No viés do inclassificável: a arte pela multiplicidade
Luciana Andrade Gomes 1
“O que não está ordenado de um modo definitivamente provisório o está de modo provisoriamente definitivo” Georges Perec.
Em Seis propostas para o próximo milênio (1990), Italo Calvino destacou a multiplicidade como uma das principais características da arte que marcaria a virada do milênio e afirmou que a produção artística seria definida por um conjunto de redes ou conexões entre os fatos, entre as pessoas e entre as coisas do mundo. Nesse sentido, a arte contemporânea pode ser concebida a partir de um cenário híbrido e multifacetado, marcado pela ruptura de fronteiras, pela convergência dos meios semióticos e pela extinção de modelos classificatórios rígidos e sistematizados.
Segundo Arlindo Machado, em Arte e Mídia (2007), a arte é um processo em permanente mutação e sempre foi produzida com os meios de seu tempo. Por isso, desde os primórdios, o campo do estudo que se destinava a “uma iluminação mútua das artes” estava ligado a uma concepção tradicional e restrita. Porém, a partir dos ready-made de Marcel Duchamp, tornou-se cada vez mais difícil diferenciar a “arte” da “não-arte”. Além disso, com o surgimento da internet e dos processos midiáticos, a arte tornou-se plural e dinâmica, absorvendo os questionamentos contemporâneos.
Na atualidade, essa profusão de mídias está tão onipresente na vida social e individual que não existe qualquer campo de produção de linguagem que possa estar à margem de suas influências, nem mesmo a arte. Walter Benjamin já havia chamado a atenção para o uso das novas tecnologias na produção artística, dizendo que esse seria um caminho para instigar novas possibilidades de produção e expressão para os artistas.
Para Arlindo Machado, não é por acaso que a contemporaneidade tem sido marcada pela sinestesia e pela multiplicidade. Para o autor, no movimento de fusão entre as mídias, “a música é visual, a escultura é líquida ou gasosa, o vídeo é processual, a literatura é hipermídia, o teatro é virtual, o cinema é eletrônico e a televisão é digital” (MACHADO, 2007, p. 72). Assim, as fronteiras são diluídas e os limites são redimensionados, tornando-se um espaço de produção heterotópico.
Zygmunt Bauman (2001), em Modernidade líquida, relaciona essa quebra de fronteiras à noção de “fluidez”, afirmando que os fluidos se movem com grande facilidade e estão, constantemente, prontos para mudar. Ele utiliza duas categorias (“líquido” e “sólido”) para diferenciar as principais características do mundo contemporâneo, recorrendo à “liquidez” como metáfora para compreender a natureza dessa nova fase. Isso porque, hoje, há um derretimento dos padrões, das fronteiras e das molduras que estabeleciam as classes e que garantiam a ordem, resultando na multiplicidade e nos hibridismos a partir da abertura para o diferente. Esse deslocamento aponta para o além, para um lugar de cruzamentos múltiplos, que ultrapassa e expande a experiência, revelando a descontinuidade e a diferença.
Roland Barthes (1981), em Fragmentos de um discurso amoroso, se vale da palavra grega atopos para designar esse tipo de situação, apontando não só para o fato de não se confinar em um lugar, mas também pela resistência à descrição e definição, caracterizando o que é estranho, extraordinário, insólito e original. Isso também significa que esses elementos podem se enquadrar em vários lugares ao mesmo tempo, resistindo a uma classificação permanente. Por isso, a arte contemporânea é atópica, por transitar livremente, por justapor vários elementos distintos, provocando um deslocamento na ordem do espaço e do tempo.
Essa mobilidade é também associada à ideia de “leveza” ou “ausência de peso”. Calvino afirma que o espectador deve ser capaz de transitar, com agilidade, sobre as possíveis redes de significações da obra. Na sua visão, a arte deve ser leve, ágil e dinâmica, recorrendo à mutabilidade e vivacidade da obra. Dessa forma, a experiência artística não seria regida por regras fixas e definitivas, mas correria livre em direção ao inclassificável, podendo transitar por vários lugares ao mesmo tempo.
Na acepção tradicional de classificação, o espaço é compreendido como o local de encontro de semelhanças e distanciamento das diferenças. É a partir da semelhança que se impõe “a ordem da conjunção e do afastamento”, que Michel Foucault, em As palavras e as coisas, chamou de convenientia: “São ‘convenientes’ as coisas que, aproximando-se uma das outras, vêm a se emparelhar; tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o começo da outra”, de modo que nasce, dessas articulações, uma semelhança (FOUCAULT, 2007, p. 24).
Segundo o filósofo, esse encadeamento de semelhanças provoca uma conveniência espacial, impondo uma relação de similitude entre as coisas a partir do signo de parentesco. É possível, então, assegurar a classificação por meio de um círculo fechado, pois, “a semelhança impõe vizinhanças que, por sua vez, asseguram semelhanças. […] em cada ponto de contato começa e acaba um elo que se assemelha ao precedente e se assemelha ao seguinte” (FOUCAULT, 2007, p. 25-26).
Em “Da classificação dos seres à classificação dos saberes”, Olga Pombo afirma que classificar seria uma forma de estabelecer “os pontos estáveis que nos impedem de rodopiar sem solo, perdidos no inconforto do inominável, da ausência de ‘idades’ ou ‘geografias’” (POMBO, 1998, p. 1). Essas classificações parecem tão naturais e óbvias que se encontram inerentes ao pensamento humano, apresentando-se como os códigos ordenadores da nossa cultura. Para Robert Darnton, em O grande massacre de gatos, as classificações ocupam um espaço epistemológico anterior ao pensamento e, quando somos colocados perante uma maneira estranha de organizar a experiência, “sentimos a fragilidade de nossas próprias categorias e tudo ameaça desfazer-se. As coisas se mantêm organizadas apenas porque podem ser encaixadas num esquema classificatório que permanece inconteste” (DARNTON, 1988, p. 248-249).
Dessa forma, o inclassificável estaria, assim, ligado à noção de desterritorialização, pois não há mais fronteiras nítidas, mas sim uma fractalização do mundo. A arte se torna um espaço de confluência de fragmentos distintos, abrindo-se para novas combinações. Por essa razão, buscar modelos de classificação definitivos se torna impossível, pois a dinamização impede uma ordenação fixa das coisas. Dessa maneira, a potencialidade máxima da experimentação da linguagem é um estado permanente de devir.
A partir disso, é possível definir a arte contemporânea por meio do inclassificável, sendo sinônimo de híbrido, virtual e metamórfico, como uma tentativa de acompanhar e absorver esse aspecto instável e acelerado da contemporaneidade, uma espécie de devir infinito, que rompe com a ideia de totalidade. Por sua natureza fluida e ageográfica, o inclassificável deixa de estar à margem para transitar com facilidade pelos múltiplos canais do mundo, respondendo às necessidades específicas do momento e esquivando-se de qualquer tentativa de ordenação permanente.
Referências:
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Francisco Alves, 1981.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DARNTON, Robert. Os filósofos podem a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie. In: DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 247-270.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
POMBO, Olga. Da classificação dos seres à classificação dos saberes. Lisboa, 1998. Disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/opombo-classificacao.pdf. Acesso em 10 jul. 2009.
1 – Luciana Andrade Gomes é mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais, pós-graduada em História da Cultura e da Arte e bacharel em Comunicação Social. Tem experiência na área de cinema, atuando principalmente com os seguintes temas: intermidialidade e poéticas audiovisuais. É uma das autoras dos livros “Areia, animal, arquivo e alcachofra: quatro ensaios inclassificáveis” (2009), e “Leitura e escrita em movimento” (2010).